Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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(Passy, 4 de outubro de 1864 - Médium: Sr. Rul)

NOTA: O médium tinha tido a intenção de evocar Latour desde o momento do suplício. Tendo perguntado a seu guia espiritual se poderia fazê-lo, foi-lhe respondido que esperasse o momento que lhe seria indicado. A autorização foi dada somente no dia 3 de outubro, depois que ele leu o artigo da Revista que tratava do caso.

P. ─ Ouvistes as minhas preces?

R. ─ Sim, apesar de minha perturbação, eu as ouvi e vo-las agradeço. Fui evocado pouco após a minha morte e não me pude comunicar logo, mas muitos Espíritos levianos tomaram meu nome e meu lugar. Aproveitei em Bruxelas a presença do Presidente da Sociedade de Paris e, com a permissão dos Espíritos superiores, comuniquei-me.

Irei comunicar-me na Sociedade, e farei revelações que serão um começo de reparação das minhas faltas e que poderão servir de ensinamento a todos os criminosos que me lerem e refletirem no relato de meus sofrimentos.

Os discursos sobre as penas do inferno produzem pouco efeito sobre o espírito dos culpados, que não acreditam em todas essas imagens, que são apavorantes para as crianças e para os homens fracos. Ora, um grande malfeitor não é um Espírito pusilânime, e o medo da polícia age mais sobre ele que o relato dos tormentos do inferno. Eis por que todos os que me lerem serão tocados por minhas palavras, por meus sofrimentos, que não são suposições. Não há um só sacerdote que possa dizer: “Eu vi o que vos digo; eu assisti às torturas dos danados.” Mas quando eu vier dizer: “Eis o que se passou após a morte de meu corpo; eis o que foi o meu desencanto, ao reconhecer que não estava morto, como tinha esperado, e o que eu havia considerado como o fim dos meus sofrimentos era o começo de torturas impossíveis de descrever”, então mais de um parará à borda do precipício onde ia cair. Cada infeliz que eu parar assim na via do crime servirá para resgatar uma das minhas faltas. É assim que o bem sai do mal, e que a bondade de Deus se manifesta por toda parte, na Terra como no espaço.

Foi-me permitido libertar-me da visão de minhas vítimas, que se tornaram meus carrascos, a fim de me comunicar convosco. Mas em vos deixando, eu as verei novamente, e este simples pensamento me faz sofrer mais do que vos posso dizer. Sou feliz quando me evocam, porque então deixo o meu inferno por alguns instantes. Orai sempre por mim; pedi ao Senhor que me liberte da visão de minhas vítimas.

Sim, oremos juntos. A prece faz tanto bem!... Estou mais aliviado; já não sinto tanto o peso do fardo que me esmaga. Vejo um clarão de esperança brilhar aos meus olhos, e cheio de arrependimento exclamo: Bendita seja a mão de Deus. Que seja feita a sua vontade!

J. LATOUR


O guia espiritual do médium dita o seguinte:

“Não tomes os primeiros gritos do Espírito que se arrepende como sinal infalível de suas resoluções. Ele pode estar de boa-fé em suas promessas, porque a primeira impressão que ele sente ao se ver mergulhado no mundo dos Espíritos é de tal modo fulminante que, ao primeiro testemunho de caridade que recebe de um Espírito encarnado, entrega-se às efusões do reconhecimento e do arrependimento. Mas, por vezes, a reação é igual à ação, e muitas vezes esse Espírito culpado, que a um médium ditou tão boas palavras, pode voltar à sua natureza perversa, a seus pendores criminosos. Como uma criança que tenta caminhar, ele precisa ser ajudado para não cair.”

No dia seguinte foi novamente evocado o Espírito de Latour.

O médium. ─ Em vez de pedir a Deus que vos liberte da visão de vossas vítimas, eu vos concito a orar comigo para lhe pedir a força para suportar essa tortura expiatória.

Latour. ─ Eu preferiria ser libertado da visão de minhas vítimas. Se soubésseis o que sofro! O homem mais insensível ficaria comovido se pudesse ver, impressos em meu rosto como se fosse com fogo, os sofrimentos de minha alma. Farei o que me aconselhais. Compreendo que é um meio um pouco mais rápido de expiar minhas faltas. É como uma operação dolorosa, que deve dar a saúde ao meu corpo muito doente.

Ah! Se os culpados da Terra pudessem ver-me, como ficariam apavorados com as consequências de seus crimes que, ocultos aos olhos dos homens, são vistos pelos Espíritos! Como a ignorância é fatal a tanta pobre gente!

Que responsabilidade assumem os que recusam a instrução às classes pobres da Sociedade! Eles pensam que com a polícia e os guardas podem prevenir os crimes. Como estão errados! Se dobrassem ou quadruplicassem o número de agentes da autoridade, os mesmos crimes seriam cometidos, porque é preciso que os maus Espíritos encarnados cometam crimes.

Eu me recomendo à vossa caridade.


OBSERVAÇÃO: Sem dúvida é por um resto de preconceitos terrenos que Latour diz: “É preciso que os maus Espíritos encarnados cometam crimes.” Seria a fatalidade nas ações dos homens, doutrina que a todos excusaria. Aliás, é muito natural que ao sair de semelhante existência, o Espírito não compreenda ainda a liberdade moral, sem a qual o homem estaria no nível dos animais. A gente pode admirar-se de que ele não diga coisas piores.

A comunicação seguinte, do mesmo Espírito, foi obtida espontaneamente em Bruxelas, pela Sra. C..., a mesma médium que havia servido de instrumento à cena relatada no número de outubro.

“Nada mais temais de mim. Estou mais tranquilo, contudo ainda sofro. Deus teve piedade de mim, porque viu o meu arrependimento. Agora sofro esse arrependimento que me mostra a enormidade de minhas faltas.

“Se eu tivesse sido bem guiado na vida, não teria feito todo o mal que fiz, mas os meus instintos não foram reprimidos, e a eles obedeci, pois não conhecia freios. Se todos os homens pensassem bastante em Deus, ou, pelo menos, se todos os homens nele acreditassem, semelhantes atrocidades não mais seriam cometidas.

“Mas a justiça dos homens é mal compreendida. Por uma falta, às vezes leve, um homem é metido numa prisão que é sempre um lugar de perdição e de perversão. Dali ele sai completamente perdido pelos maus conselhos e pelos maus exemplos colhidos. Contudo, se sua natureza é suficientemente boa e bastante forte para resistir ao mau exemplo, ao sair da prisão todas as portas lhe são fechadas, todas as mãos dele se distanciam, todos os corações honestos o repelem. O que lhe resta? O desprezo e a miséria. O desprezo, o desespero, se ele sentir em si boas resoluções para voltar ao bem; a miséria o impele a tudo. Então ele também despreza o seu semelhante, odeia-o, e perde toda a consciência do bem e do mal, porque se vê repelido, ele, que entretanto havia tomado a resolução de tornar-se honesto. Para conseguir o necessário, ele rouba, ele mata, às vezes. Depois o guilhotinam!

“Meu Deus, no momento em que minhas alucinações me vão retomar, sinto vossa mão estender-se sobre mim; sinto vossa bondade que me envolve e me protege. Obrigado, meu Deus! Em minha próxima existência empregarei minha inteligência e todos os meus esforços para socorrer os infelizes que sucumbiram e para preservá-los da queda.

“Obrigado, a vós que não vos repugnais em comunicar-se comigo. Não temais, pois vedes que não sou mau. Quando pensardes em mim, não mentalizeis a imagem que de mim vistes, mas tende em mente uma pobre alma desolada, agradecida por vossa indulgência.

“Adeus. Evocai-me novamente, e rogai a Deus por mim.

“LATOUR”


OBSERVAÇÃO: O Espírito alude ao medo que sua presença inspirava ao médium.

Além disso, ele diz: “Eu sofro esse arrependimento que me mostra o enormidade de minhas faltas.” Há nisto um pensamento profundo. O Espírito não compreende, realmente, a gravidade de seus erros senão quando se arrepende. O arrependimento traz o pesar, o remorso, sentimento doloroso que é a transição do mal para o bem, da doença moral para a saúde moral. É para escapar disto que os Espíritos perversos resistem à voz da consciência, como esses doentes que repelem o remédio que deve curá-los. Eles procuram iludir-se e atordoar-se, persistindo no mal. Latour chegou à fase em que o endurecimento acaba cedendo, e o remorso entrou em seu coração. Em seguida veio o arrependimento. Ele compreende a extensão do mal que fez, vê a sua abjeção e a sofre. Eis por que ele diz: “Eu sofro esse arrependimento.” Em sua existência precedente, ele deve ter sido pior que nesta, porque se se tivesse arrependido como faz agora, sua vida teria sido melhor. As resoluções que ele toma agora influirão sobre sua futura existência terrena. A que ele acaba de deixar, por mais criminosa que tenha sido, marcou-lhe uma etapa do progresso. É mais do que provável que antes de iniciá-la ele fosse, na erraticidade, um desses maus Espíritos rebeldes, obstinados no mal, como se veem tantos.

Muitas pessoas perguntaram que proveito poderia ser tirado das existências passadas, levando-se em consideração que a gente nem se lembra do que foi, nem do que fez.

Esta questão está completamente resolvida pelo fato que, se o mal que praticamos é apagado; se nenhum traço resta em nossos coração, sua lembrança seria inútil, pois com eles não mais temos que nos preocupar. Quanto àquilo de que não nos corrigimos completamente, conhecemos por nossas tendências atuais; é para estas que devemos voltar toda a nossa atenção. Basta saber o que somos, sem que seja necessário saber o que fomos.

Quando se considera a dificuldade, durante a vida, da reabilitação do culpado mais arrependido, da reprovação de que ele é objeto, deve-se agradecer a Deus por haver lançado um véu sobre o passado. Se Latour tivesse sido condenado em tempo hábil, e mesmo que tivesse sido resgatado, seus antecedentes teriam feito com que ele fosse repelido pela Sociedade. Malgrado o seu arrependimento, quem o teria admitido na intimidade? Os sentimentos que hoje manifesta como Espírito nos dão a esperança que, na próxima existência terrena, será um homem honesto, estimado e considerado. Mas suponde que se saiba que ele foi Latour! A reprovação ainda o perseguirá. O véu lançado sobre o passado lhe abre a porta da reabilitação. Ele poderá assentar-se sem receio e sem acanhamento entre as mais decentes pessoas. Quantas pessoas não gostariam de apagar da memória dos homens, a todo custo, certos anos de sua existência!

Onde se encontra uma doutrina que melhor se harmonize com a justiça e a bondade de Deus? Aliás, esta doutrina não é uma teoria, mas resultado da observação. Não foram os espíritas que a imaginaram; eles viram e observaram as diversas situações em que se apresentam os Espíritos; eles procuraram a sua explicação, e dessa explicação saiu a doutrina. Se eles a aceitaram é porque ela resulta dos fatos, e porque ela lhes pareceu mais racional que todas as emitidas até hoje sobre o futuro da alma.

Latour foi evocado muitas vezes, o que era muito natural, mas, como acontece em casos semelhantes, houve muitas comunicações apócrifas, e os Espíritos levianos não perderam essa ocasião. A própria situação de Latour impedia que ele pudesse manifestar-se quase simultaneamente em tantos pontos ao mesmo tempo, porquanto a ubiquidade só é possível a Espíritos superiores.

As comunicações que relatamos são mais autênticas? Julgamos que sim e o desejamos, sobretudo para o bem desse Espírito. Na falta de provas materiais que atestem a identidade de modo absoluto, como muitas vezes são obtidas, pelo menos temos as provas morais, que tanto resultam das circunstâncias em que ocorrem as manifestações quanto da concordância. Sobre as comunicações que conhecemos, vindas de fontes diversas, pelo menos três quartas partes são coerentes quanto ao fundo; entre as outras, algumas não resistem a um exame, tão evidente é o erro de situação, e em flagrante contradição com o que nos ensina a experiência sobre o estado dos Espíritos no mundo espiritual.

Seja como for, não se pode recusar àquelas que citamos um alto ensino moral. O Espírito pode ter sido, deve mesmo ter sido ajudado em suas reflexões, e sobretudo na escolha das expressões, por Espíritos mais adiantados. Mas, em casos semelhantes, estes últimos só assistem na forma, e não no fundo, e jamais põem o Espírito inferior em contradição consigo mesmo. Em Latour puderam poetizar a forma do arrependimento, mas não o teriam levado a exprimir o arrependimento contra a sua vontade, porque o Espírito tem o seu livre-arbítrio. Eles viam nele o germe dos bons sentimentos, por isso ajudaram-no a exprimi-los, e dessa forma contribuíram para desenvolvê-los, ao mesmo tempo que para ele atraíram a comiseração.

Há algo de mais empolgante, de mais moral, de natureza a impressionar mais vivamente que o quadro desse grande criminoso arrependido, manifestando seu desespero e seu remorso, que, em meio às torturas, perseguido pelo olhar incessante de suas vítimas, eleva o pensamento a Deus para implorar misericórdia? Não está aí um salutar exemplo para os culpados? Tudo é sensato em suas palavras; tudo é natural em sua situação, ao passo que o que lhe é atribuído por certas comunicações é ridículo. Compreende-se a natureza de suas angústias; elas são racionais, terríveis, posto que simples e sem aparato fantasmagórico. Por que não se teria arrependido? Por que não haveria nele uma corda sensível vibrando? Está precisamente aí o lado moral de suas comunicações; é a compreensão que ele tem da situação; são seus pesares, suas resoluções, seus projetos de reparação que são eminentemente instrutivos. O que teriam visto de extraordinário se ele se tivesse arrependido sinceramente antes de morrer; se ele houvesse dito antes o que disse depois?

Uma volta ao bem antes de sua morte, aos olhos da maioria de seus pares, teria passado por uma fraqueza. Sua voz de além-túmulo é a revelação do futuro que os aguarda. Ele está absolutamente certo quando diz que o seu exemplo é mais adequado a reconduzir os culpados do que as chamas do inferno, e mesmo o cadafalso. Por que, então, não lhes é dado nas prisões? Isto levaria mais de um a refletir, conforme temos vários exemplos. Mas como crer na eficácia das palavras de um morto, quando se acredita que quando se morre tudo está acabado? Dia virá, entretanto, em que se reconhecerá esta verdade: Os mortos podem vir instruir os vivos.

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